Para abrir a semana do dia 12 de junho (Dia Mundial do Combate ao Trabalho Infantil) e contribuir para a conscientização sobre o tema, foi lançado, na última segunda-feira (10/06), o Guia Passo a Passo: Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil na Cidade de São Paulo.
O guia foi desenvolvido pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Cidade Escola Aprendiz; pela Rede Peteca, por meio do projeto Chega de Trabalho Infantil; e pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
O lançamento da publicação contou com um debate na FESPSP. Na mesa, estavam Luciana Silveira, autora do guia; Felipe Tau, jornalista e gestor da Rede Peteca; Carla Regina Mota, professora e coordenadora do curso de Sociologia e Política na FESPSP; e Elisiane dos Santos, coordenadora do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FPPETI).
“Trabalho infantil é indecente”
O objetivo do guia é trazer de volta a discussão da agenda do combate ao trabalho infantil, em uma linguagem clara e aprofundada sobre o tema, com dados e recomendações para a erradicação desta prática.
“Trabalho infantil não é um conceito abstrato. É uma violação grave de direitos humanos. É toda forma de trabalho degradante para crianças e desprotegida para adolescentes”, conta o gestor da Rede Peteca e ex-aluno da FESPSP, Felipe Tau.
Uma das fases da pesquisa de Luciana Silveira, que é socióloga e doutora pela Unicamp e levou quatro anos para escrever o guia, foi a realização de oficinas com pessoas que sofreram com o trabalho infantil e pessoas que não sofreram. E ela contou, durante o lançamento da publicação, que ouviu muitas expressões que naturalizam o trabalho infantil, ao longo dessas oficinas.

Foto: Rede Peteca
Ainda de acordo com ela, essas expressões quase não eram contestadas por outros participantes, apenas por pessoas que sentiram na pele o que é o trabalho infantil.
“’Trabalho de criança é pouco, mas quem dispensa é louco. ’ Essa frase foi dita pela minha avó, que não enxergava o trabalho infantil como um problema. Minha mãe, por exemplo, começou a trabalhar aos 9 anos de idade em serviço doméstico para fora, e tem sequelas até hoje”, revela a autora do livro.
No trabalho de campo para apuração de dados, foram realizados acompanhamentos com as famílias atendidas e inscritas no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
O trabalho começou com as pesquisas da Rede Peteca junto ao Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), no distrito do Jardim Ângela, zona sul da capital paulista.
“O que constatamos no trabalho de campo foi que o trabalho infantil é uma herança. Leva de 3 a 4 gerações de uma família até que essa cultura seja rompida”, diz Luciana Silveira.
“O trabalho é solução para a criança negra, pobre e da periferia. Existe um recorte de cor e de classe quando falamos de trabalho infantil”
De acordo com o levantamento do Sistema de Atendimento ao Cidadão em Situação de Rua (Sisrua/Cubos), realizado entre janeiro e junho de 2018, foram 372 abordagens de crianças vendendo produtos no farol; 275 como feirantes; 270 como guardadores de carros; e 236 fazendo malabarismo no farol, só na cidade de São Paulo.
Na cidade de São Paulo, os dados mais recentes sobre o trabalho infantil são do Censo IBGE de 2010, que aponta que 85.298 crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos tinham seus direitos violados ao serem expostos ao trabalho infantil.
Os dados apresentados pela PNAD anualmente não oferecem um panorama completo, pois utilizam a técnica de amostragem sem percorrer todos os domicílios. Segundo a PNAD 2015, em São Paulo havia 198 mil crianças entre 10 e 17 anos nestas condições.
“O trabalho infantil ainda é percebido como um problema menor por cada indivíduo que, ao ver uma criança na rua pedindo esmola no semáforo, estende sem pensar alguns trocados, como se fosse algo natural na paisagem urbana”, desabafa a autora do guia.
Trabalho infantil: uma consequência cultural

Elisiane dos Santos, coordenadora do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FPPETI). | Foto: Mariana Lima
“Trabalho infantil é indecente”. É assim que a coordenadora do curso de Sociologia e Política da FESPSP, Carla Regina Mota, define o trabalho infantil.
Ela chama atenção para os dados de 2016 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE: 2,4 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos estão em situação de trabalho infantil.
“São 2 milhões e 400 mil crianças que têm os seus direitos negados e violados. É negado a elas o direito à infância, o direito de ser criança”.
A procuradora do Trabalho do MPT-SP e coordenadora do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FPPETI), Elisiane dos Santos, também reflete sobre o dado. “As pessoas pensam que esse dado é mínimo se comparado à população total do Brasil de crianças e adolescentes. Porém, 2,4 milhões é quase toda a população de Salvador (BA)”.
O trabalho Infantil é naturalizado na sociedade por meio de discursos que o colocam como ferramenta para construção de caráter das crianças. “O trabalho é solução para a criança negra, pobre e da periferia. Existe um recorte de cor e de classe quando falamos de trabalho infantil”, reflete Carla Regina.
O trabalho infantil expõe toda uma cadeia de desigualdades na qual o país está inserido, principalmente no seio familiar, pois os filhos acompanham os pais na busca por alimento e sustento.
Além de reproduzir preconceitos de cor, classe e gênero, o trabalho infantil também reforça o modelo patriarcal no momento em que meninas tendem a ficar em casa realizando trabalhos domésticos e cuidando dos irmãos para os pais trabalharem.
“É cultura de quem e para quem? Esse mecanismo continua sendo reproduzido por uma mesma parcela da sociedade, tanto na classe alta como na baixa”, diz Elisiane dos Santos.
A glamourização do trabalho infantil
Em fevereiro de 2019, o centro de treinamento das categorias de base do Flamengo, no Rio de Janeiro, pegou fogo. 10 meninos morreram e outros 3 saíram com ferimentos.
O caso reflete uma situação de trabalho infantil não reconhecida pela sociedade. Durante as investigações, ficou claro que os meninos tiveram diversos direitos – tanto trabalhistas com do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – negados.
Para a coordenadora do curso de Sociologia e Política da FESPSP, Carla Regina Mota, a atuação de crianças e adolescentes no futebol e no meio artístico ainda não é vista como uma forma de trabalho.

Luciana Silveira, autora do guia e o jornalista e gestor da Rede Peteca, Felipe Tau. | Foto: Mariana Lima
“Nós não vemos os direitos destas crianças sendo garantidos, apenas as violações. O caso dos meninos do Ninho do Urubu (nome do centro de treinamento do Flamengo) é mais uma delas. Isso é consequência de uma glamourização do trabalho infantil quando se refere ao meio artístico e do esporte. É tudo muito bonito, mas tem alguém fiscalizando? ”
Mota chama atenção para outro fato: o trabalho artístico e esportivo exige tanto das crianças quanto dos adultos. Muitas crianças abrem mão dos estudos para se dedicarem exclusivamente aos treinos e ensaios.
“Ao não passarem na peneira para um time de futebol, essas crianças acabam em trabalhos mais precários, já que não tinham tempo para os estudos”.
Naturalização da arte infantil
O repórter fotográfico da Rede Peteca Thiago Queiroz é o responsável pelas fotografias que acompanham o guia. Ele relata que demorou um pouco para perceber casos de trabalho infantil que ocorrem todos os dias na cidade de São Paulo.
“Encontrei uma vez meninos com os rostos pintados de prateado em uma estação. Tirei uma foto e publiquei com a legenda ‘olha que legal essas crianças’. Tempos depois, encontrei outro grupo de meninos do mesmo jeito, só que desta vez eles entregaram um papel pedindo ajuda, comida ou dinheiro. Entrei em choque quando percebi isso”.
Queiroz já presenciou outros casos em que sentiu essa naturalização imediata. “Uma vez, na feira, vi crianças trabalhando, carregando coisas. Logo pensei que eles estavam ajudando as famílias, o que não era nada demais”.
Para a procuradora do Trabalho Elisiane dos Santos, todo trabalho realizado por crianças é trabalho infantil, sendo necessário desnaturalizar esse cenário que promove a aceitação e valorização da cultura de exploração infantil.
“É em consequência desta cultura que ao vermos crianças se apresentando no farol, no trem, no metrô e nas ruas, achamos bonito. Não enxergamos a violência por trás disso”.
Fonte: Observatorio3Setor
Texto: Mariana Lima